Semana passada, caiu um “ditador de direita”. Se é que se pode creditar um ditador assim. A esquerda mundial comemorou, do Le Monde ao pasquim da esquina, passando pelos militantes do Facebook. Agora, é a vez de um “ditador de esquerda” cair. Ora, ditadores são ditadores. De esquerda ou de direita, o pronome de tratamento que se deve a eles é Ditador.
Em sã consciência, não dá para entender porque alguns ditadores ficam acima de qualquer julgamento moral pela esquerda. Kadafi é um exemplo desse salvo-conduto canhoto. Ditador, réu confesso de diversos massacres, assassino vil de seus opositores, talvez o único feito que possa justificar o silêncio incômodo daqueles que dizem lutar pelas liberdades e valores humanos seja o fato dele ter sido por anos um falastrão antiamericano. Parece que isso, por si só, é suficiente para conquistar a simpatia pétrea dessa gente “de esquerda”.
Kadafi, que nasceu e viveu para ser revolucionário, como se a revolução fosse um fim em si mesmo, entrou para o exército aos 17 anos já com o objetivo de tomar o poder. Era um filho de classe média e, como tal, um tanto rebeldezinho. Sua ira freudiana aumentou, provavelmente, quando se sentiu abandonado pelos pais ainda pequeno para estudar numa escola burguesa, onde se destacava em literatura e geografia. Suas redações escolares de quando tinha pouco mais de 12 anos dão conta de uma personalidade excêntrica, com planos de golpe contra o rei Ídris. Acabou conseguindo o que queria, como todo bom mimado. Em 1969, tornou-se presidente da Líbia com apenas 27 anos de idade.
No poder, Kadafi, que agora é chamado de uma porção de variantes, como Gaddafi, Qaddafi, entre outras, também utilizou essa capacidade metamórfica para se aliar e desalinhar aos líderes mais nefastos da região Pan-arábica. Implementou as tradicionais políticas do nacionalismo secular estatizante, típicas das revoluções das décadas de 50 e 60 naquela área, declarando a Líbia como “Estado Socialista de Massas”, quiçá uma referência aos espaguetes do ex-colonizador. Os italianos e americanos foram expulsos, o álcool, as danceterias e os bares foram banidos junto com os partidos políticos, o estado assumiu o controle do petróleo e buscou-se a homogeneidade nacional em torno da língua árabe e dos preceitos morais do islã. Kadafi ainda escreveu o Livro Verde, uma espécie de constituição invejosa feita ao estilo do Livro Vermelho de Mao.
Como mandatário revolucionário, apoiou e financiou revoltas populares em todo o mundo com recursos do petróleo, que significa cerca de 95% das riquezas da Líbia até hoje. Comprou o respeito da “esquerda”, da Colômbia à Irlanda, com seu dinheiro fóssil e declarou-se Rei da África. Em sua linha de crédito também coube o financiamento de grupos terroristas como o Fatah e o Setembro Negro em ações que dinamitaram lojas, metralharam viajantes em aeroportos, explodiram aviões e produziram o massacre de Munique nos jogos olímpicos de 1972.
O envolvimento com o terrorismo nas décadas de 70 e 80 rendeu naquela época a Kadafi o status que tem hoje Bin Laden, o que custou à Líbia de tentativas de isolamento internacional ao bombardeio de Trípoli, em 1986, numa ação declarada, e inepta, de assassinato de Kadafi gestada por Reagan. Uma filha de Kadafi morreu nesse episódio. Em outra retaliação, foi imposta pela ONU, em 1992, a asfixia econômica da Líbia por meio de um embargo que perdurou por sete anos.
Recentemente, Kadafi moderou o tom e tentou promover ações que pudessem aproximá-lo do ocidente. Como um malcriado arrependido, o ditador medroso, temente à ira bélica assanhada americana, posicionou-se contra a Al Qaeda, desintegrou voluntariamente suas próprias armas de destruição em massa e passou a convidar os “imperialistas” a investir em seu país socialista islâmico, tudo com a boa intenção de pacificar a região.
Cansadas de mais de 42 anos da autocracia que se manteve no poder por meio do uso da violência do estado, as pessoas, não mais os revolucionários, saíram às ruas na Líbia, motivadas pelos exemplos da Tunísia e do Egito. O El País tem a melhor definição dessas pessoas que não são de esquerda tampouco de direita:
“São pessoas de todos os estamentos sociais, desde as classes mais altas às mais baixas. Mulheres, crianças, adolescentes, estudantes de medicina ou ativistas de direitos humanos, camareiros ou farmacêuticos, também há uma grande maioria de desempregados. Fecharam as ruas para pedir que devolvam seu país. Não têm um perfil determinado e o governo não é capaz de encarcerá-los. Saíram às ruas em todos os pontos do país e não pensam em voltar às suas casas até que alcancem o que almejam: liberdade, segurança, bem-estar, pão e democracia”.
Depois da crise americana e do colapso eminente das economias europeias, é bom que a esquerda ocidental saiba se posicionar num mundo multipolar, onde as revoluções são espontâneas e feitas por pessoas. Se não quiser desaparecer como os ditadores, a esquerda terá que aprender a lição que vem das ruas do mundo árabe. Inevitável se posicionar, rápida e intransigentemente, contra qualquer ditadura e qualquer ditador, sob pena de, omissa, ser pisada pelas pessoas que continuarão marchando para um mundo onde a libertação, leia-se no sentido amplo da palavra, e a democracia, leia-se no sentido estrito da palavra, farão a nova dialética. Acorda, esquerda!